A ARTE DE COLECIONAR

Médico Marcelo Collaço Paulo revela as obras-primas do acervo pessoal reunido

TEXTO URBANO SALLES – FOTOS MARCO CEZAR

Uma menina acompanhada pela mãe, aparentando oito, nove anos, observa com atenção uma escultura sacra em madeira, do século XVII. “Você gostou?”, pergunta o dono da peça. “Eu não estou aguentando, eu não estou aguentando! Lá na escola de arte eu quero fazer uma mãozinha e não consigo, e olha o que esse cara fez aí!”, exclama a garota. O colecionador que havia em grande parte proporcionado aquele momento de encantamento respondeu com um abraço e um beijo.

A reação da criança ao ver a beleza, a gestualidade do corpo representada na arte, é relatada com emoção por Marcelo Collaço Paulo, médico por profissão que pela primeira vez está expondo parte importante do acervo de arte construído com a mulher, Jeanine, classificada pelo marido como uma “leitora voraz”, cuja curiosidade pelo mundo e pelo belo ajudou no sucesso da convivência matrimonial.

“Sensos e Sentidos”, sob curadoria de Edina de Marco e Josué Mattos, estava programada para terminar dia 4 de março, mas ganhou um tempo extra, até dia 25, tamanha a repercussão e o interesse gerado pela presença simultânea no MASC de obras de mais de 40 artistas que passeiam por diferentes épocas, do Renascimento aos tempos modernos, e compartilham o mesmo tema, escolhido pelos curadores: o corpo humano. O prazo esticado vai permitir também que mais estudantes de escolas possam visitar a exposição, aberta em dezembro.

O colega Ylmar Corrêa Neto, também médico e colecionador, assinalou em artigo publicado na revista do Conselho Regional de Medicina: a coleção Jeanine e Marcelo Collaço Paulo é “herdeira da tradição europeia de conjuntos de obras de arte cultivados por profissionais liberais cultos, especialmente juristas e médicos”. Faltava mostrá-la ao público em geral.

REVISTA MURAL N. 75

“Havia uma cobrança”, confessa Marcelo. “Depois que passei dos 60, pensei: não quero uma exposição póstuma… Vi que tinha chegado o momento de dividir minha coleção para que isso possa estimular outras pessoas a colecionar”.

E lá se vão cerca de quatro décadas desde que Marcelo começou a levar a coleção a sério. Aos 20 anos, ainda estudante de Medicina, já tinha um Martinho de Haro, pintor cujo ateliê na Rua Alves de Brito ele já visitava “e ficava ali paradinho, sentado”, só admirando o grande mestre em ação.

“Eu falava que queria um quadro dele, mas ele me dizia que também tinha vontade de ter um Mercedes-Benz, e não tinha. Nunca desisti. Um dia descobri que ele precisava de um lustre de opalina para colocar na sala. Fui atrás, encontrei um, e ele aceitou trocar por um quadro. Foi uma coisa bem fraternal. A felicidade do artista é saber que as pessoas gostam da arte dele”. 

Antes de Martinho, Hassis, seu tio, tinha sido fundamental para a formação do futuro colecionador. Foi o pintor quem estimulou decisivamente no garoto de 10 anos a sensibilidade para as artes plásticas. “Ele fazia decoração de Carnaval e me chamava para preencher os espaços depois de ter feito os desenhos, os fundos. Nunca fui um exímio pintor, mas aquilo foi despertando um observador em mim. Experiência parecida tive quando meu tio Márcio Collaço presidia o Clube Doze de Agosto e fazia exposições de arte. Quando foram expostas tapeçarias de Vecchietti, eu ficava lá, cuidando. A arte tinha me cativado, já estava envolvido por ela”.

Outro momento marcante daqueles primeiros anos foi quando, de presente de casamento, em 1981, Marcelo ganhou outro Martinho de Haro e retratos dele e da mulher assinados pelo filho do artista, Rodrigo de Haro, hoje um dos amigos mais preciosos que o médico e colecionador tem e artista com maior número de obras na “Sensos e Sentidos”. “Ele é um defensor da cidade, um filósofo, um homem de inteligência raríssima. Conversar com ele é muito prazeroso. A obra de Rodrigo será estudada por mais de 100 anos. Toda pintura dele tem sempre um viés de suspense, um mistério que só ela traz”.

Foi assim, fascinado pelos detalhes das obras que ia descobrindo e pelo que elas “falavam”, que Marcelo expandiu sua coleção, peça a peça, até chegar ao atual acervo. “Não sei o número de obras que tenho porque nunca contei. Tenho o suficiente. No começo, acumular e colecionar se confundiam, depois foram se depurando. Uma coleção é sempre orientada num sentido, tem uma lógica. É uma paixão”. O colecionador admite que o pico de aquisições foi nos anos 1980, quando os valores eram menores. “Hoje um número maior de pessoas se interessa. A lei da oferta e da procura fez subir os preços”, comenta.

Colecionar é garimpar. Para ajudar nisso, Marcelo tem uma rede de contatos em vários pontos do país que o avisa quando alguma peça interessante é colocada à venda. Boa parte das obras vem de espólios familiares. Outra, de leilões e galerias. No dia a dia, conta também com uma museóloga que o auxilia pontualmente na catalogação das obras, sem falar nos cuidados com a manutenção das telas e das molduras. “Colecionar é um estilo de vida”, resume, emendando com um conselho para novos colecionadores: “Já recebi ofertas que na hora não quis e depois me arrependi. Se você tem condições, se a arte se apresentou para você, se ela te emocionou, fique com ela, porque ela não volta mais”.

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Dessas décadas como colecionador, uma história que ele gosta de contar é o da dona de uma escultura de Nossa Senhora, do século XIX, e uma de José, juntas há pelo menos 150 anos. Ela vendeu-lhe a primeira, mas a segunda, disse que já estava reservada. Alguns meses depois, um amigo comerciante telefonou perguntando se ele estava interessado em um José porque a dona precisava se desfazer. “Quando abri a caixa, fiquei maravilhado: era a mesma peça que havia sido separada da Nossa Senhora! Existem coisas numa coleção que são inexplicáveis”.

A coleção Jeanine e Marcelo Collaço Paulo está guardada em diferentes propriedades. Vários trabalhos estão na casa de campo da família. Na residência em Florianópolis está grande parte das obras mais relevantes. Na sala de jantar, reina o óleo sobre tela “Nu masculino sentado com bastão”, pintado em 1891 por Eliseu Visconti, considerado o maior impressionista brasileiro. O quadro foi escolhido para ilustrar o material de divulgação da exposição e seu uso chegou a ser interpretado como uma resposta à polêmica sobre arte e nudez que bombou ano passado nas redes sociais.

“Eu almoço vendo ele. É um quadro sublime, de a pessoa se ajoelhar. Visconti pintou um indivíduo da rua com seu cajado da resistência, queimado do sol. Ele mantém uma energia embora esteja despojado de tudo o que é material”, descreve. A representação do corpo humano na arte, lembra o colecionador, já produziu obras esplendorosas como o Davi de Michelangelo. Uma dessas maravilhas que podem ser vistas em “Sensos e Sentidos” é um São Sebastião espanhol, do século XVII, “um exemplo de sensualidade em uma obra sacra”.

A arte exposta na residência do casal é um deleite para quem o visita. E sempre há novidades. É comum Marcelo tirar um quadro e colocar outro, que estava guardado e longe dos olhares, no lugar. “Como são muitas obras, não estão todas na parede. Mas, às vezes, elas são trocadas. Isso renova a visão”, explica.

Outro espaço onde Marcelo exibe suas obras de arte é sua clínica de oncologia. Há pinturas de artistas catarinenses do quilate de Martinho e Rodrigo de Haro, Silvio Pléticos e muitos outros. A presença das telas integra um conceito maior em que arte e medicina se encontram, assim como aconteceu na própria vida de Marcelo. “Minha profissão de oncologista lida com a finitude e nos faz lembrar que a obra do homem é muito mais importante do que ele, porque pode passar gerações, ser admirada por 400, 500 anos, como algumas peças que estão no MASC. A arte traz um grande equilíbrio para a medicina, tanto para o relacionamento entre os profissionais quanto para um paciente que chega na clínica e vê um grande vaso de flor do Rodrigo, que é a primavera chegando, uma lufada de ar, e diz ‘que lindo isso aqui’, ‘isso passa uma mensagem’…”.

Marcelo observa que universidades americanas têm levado estudantes a museus como atividade acadêmica porque acham que a arte melhora a sensibilidade em relação aos diagnósticos e tira a hierarquização dos profissionais no momento em que médicos, psicólogos, enfermeiros e outras categorias ligadas à saúde podem discutir arte num mesmo plano, sem que alguém esteja num nível superior. Há também a questão da Síndrome de Burnout (esgotamento físico ou emocional), muito frequente entre estudantes de medicina. “Os cérebros podem ‘queimar’ de tanto estudar e a arte é uma importante forma de sublimar isso, de sair dessa grande pressão existente”.

Na vida pessoal, os últimos meses também têm sido intensos para Jeanine e Marcelo. Eles viraram avós – e em dose dupla. Primeiro chegou o neto Vicente, filho da pediatra Gabriela Gondin Paulo e Roni Mansur. Logo na sequência, no final de janeiro, a cegonha trouxe Marco Antônio, primogênito do casal de diplomatas Tatiana e Guilherme Gondin Paulo, os dois hoje atuando na Embaixada do Brasil em Roma. O filho mais jovem, o economista Thiago, vai se casar ano que vem com a médica pediatra Isabela Carvalho Martins.

Os três filhos do casal gostam de artes plásticas e já têm coleções em franca evolução, inclusive com quadros presenteados pelos pais. “Cada um tem suas preferências, todos vão a museus quando viajam. Colecionar e apreciar arte é um estilo de vida familiar no nosso caso”.

O médico e colecionador já está numa altura da vida em que começa a se perguntar: “O que será de tudo isso no futuro?”. O importante, segundo ele, é ter a garantia de um lugar onde os sucessores possam preservar a coleção. “O que não pode é deixar um problema para os filhos”, reforça. “Eu sempre digo: a parte central de uma coleção não deve ser dispersada após a morte do seu dono”.

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Marcelo externa preocupações em relação às próximas décadas. Lamenta que o poder público, de maneira geral, não dê a devida importância ao incentivo à cultura e às artes, e cita como exceção às leis de incentivos fiscais, das quais o médico é defensor. Teme que os jovens percam gradativamente o contato com as obras dos grandes artistas, num sentido oposto ao da menina que se encantou com a mãozinha da escultura sacra. “O MASC está completando 70 anos e uma forma de apoiarmos a arte é apoiarmos o museu. Nós doamos um Eduardo Dias para o acervo permanente da casa com o objetivo de estimular a comunidade a ajudar e reconhecer que sua participação é essencial para que a arte e a nossa história sejam preservadas para as futuras gerações. Jovens apaixonados hoje por arte poderão no futuro ser colecionadores que possivelmente reproduzirão e replicarão esse gosto, esse conteúdo”.

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